A Crônica da Semana – Mendicância: “Ao tocar uma alma humana seja apenas uma alma humana”
Às vezes a vida nos apresenta, coloca frente a frente ou faz com que cruze nosso caminho pessoas que, à primeira vista, podem parecer apenas mais um, mais uma, entretanto, algumas nos trazem lições, aprendizados e vivências ou apenas exemplos a não serem seguidos.
Nas tantas entrevistas que fiz, uma delas, que nem foi propriamente uma, mas mais prosa, daquelas que não se há nenhuma pretensão, apenas a troca de olhares, de palavras, de atenção mútua.
E dessa vez, o diálogo foi com um morador de rua, mendigo ou, para muita gente, ‘vagabundo’, ‘sem vergonha’, ‘cachaceiro’, etc. Avistei aquele homem maltrapilho muitos anos atrás, em uma praça, sentado, olhando para o nada. Observei um pouco e aquele olhar parado ao esmo perseverou, que ele limpava vez em quando, não sei se de lágrimas ou sujeira aos olhos.
Mais do que a curiosidade de jornalista, algo me fez aproximar e ouvir a história que aquele homem poderia ou não me contar. O protagonista seria, ou não, ele, e eu apenas a ouvinte.
Aproximei e ele recuou. “Ei dona, sai para lá. Não vou para nenhuma casa de abrigo não. Deixe eu, minha liberdade e minha tristeza em paz”. As palavras foram um convite a ficar… eu, teimosa, mais do que nunca gostaria de ouvir a história daquele homem.
Insisti. Sentei ao seu lado. Perguntei nome, de onde vinha e quanto tempo estava perambulando por aqui, na cidade. “Mas por que a senhora quer saber disso? Ninguém nunca quis saber nada de mim. A senhora é da polícia?”
Ele fazia mais perguntas a mim do que eu a ele. Respondi que não era da polícia, que era jornalista, e que queria ouvir um pouco de sua história. Receoso, mas um pouco mais tranquilo, responde-me que morou na roça na infância, depois mudou-se para a capital com os pais, mas a bebida havia destruído sua vida.
“Aprendi a beber cedo, dona. Via meu pai tomando cachaça e acompanhava ele, lá na roça. Depois nós mudamos para São Paulo. Aí que ele bebia mais ainda, ficava ‘ruim’, batia na minha mãe, em mim, só queria que eu trabalhasse e pusesse dinheiro em casa. Fui embora de casa aos 13 anos. Nunca mais soube da minha mãe, eu era filho único. Vivi nas ruas de São Paulo, mas nunca usei droga não, viu? Eu tinha medo… eu só bebia mesmo…”.
Indaguei se não tinha casado, se não tinha filhos. “Até tentei sair dessa vida, sabe dona. Arrumei uma mulher, mas ela me enganou. Levei chifre. Mas a ‘culpa’ foi minha. Eu trabalhava, mas à noite bebia, batia nela, brigava. Até que um dia ela me deixou. E eu também me deixei, mais do que já haviam me deixado nessa vida. Me abandonei e tô aqui agora, nesse estado, como a senhora pode vê”.
Perguntei se não teve apoio de ninguém ou quis parar de beber. “Apoio de onde, dona? As ‘pessoa’ passa perto da gente ou já xingando, ou passa longe. Eu nem sei como a senhora tá aqui perto de mim. Tô fedendo, sujo. Às vezes vem esse ‘povo’ do SOS que quer levar a gente sei lá para onde. Não vou não. A única liberdade que tenho nessa prisão sem muro que vivo não vão me tirar”.
Questionei sobre idade, se havia estudado. “Tenho 43. Estudei pouco, só na roça, acho que até uns 10 anos só. Mas eu gostava da escola. Tinha livro e eu sempre gostei de ler. Uma pena que não continuei estudar. Mas tinha que trabalhar, né dona. E a pinga também me afastou da escola”.
– E o senhor não pensa em parar de beber? “Até penso, mas não consigo. Beber é remédio para dor. E tenho muitas na vida. Eu sei que sou fraco, a bebida me domina. Mas, fazer o quê. Já tô nessa faz tempo. Antes de eu chegar aqui já passei por tantas cidades, sítios. Perambulo, na maioria das vezes bêbado, para esquecer minha desgraça, que se mostra todo dia quando eu olho para mim…”
Nessa altura da prosa, eu já estava em lágrimas… E ele me perguntou: “a senhora tá chorando. ‘Descurpa’, minha história é essa. Das poucas pessoas que ‘sabe’, elas também choraram. A senhora tá chorando por quê?
Naquele momento pensei num ente muito querido que perdi justamente para a mesma desgraça, a bebida, e respondi. “O senhor me fez lembrar pessoa da família que perdi tempos atrás porque também bebia, de cair pelas ruas. Adoeceu, perdeu a dignidade, os sonhos, a vida”.
Ele, simplório, completou. “É esse mesmo o caminho. A gente morre de beber”.
Novamente o indaguei: O senhor não tem sonhos? “Ah, o único sonho que tenho era parar de beber. Só assim para eu voltar a viver como gente. Mas eu sei que é difícil eu realizar. O corpo meu já acostumou com a pinga.
Antes de ir embora, perguntei se ele estava com fome. Apenas inclinando a cabeça, com vergonha, respondeu positivamente. Após comer, agradeci a conversa e lhe pedi um abraço.
“A dona tá louca. Eu tô cheirando mal, sujo. Pelo amor de Deus”.
Mesmo diante da recusa, aproximei, apertei-lhe a mão e disse: obrigada pela conversa. Aprendi muita coisa com o senhor.
Ele, meio sem entender, questionou: “e será que um mendigo fedido ensina alguma coisa?”.
Ensina e como ensina… Quantas vezes nos deixamos, nos perdemos na vida (e nem precisa ser alcoólatra)? Em quantas ‘prisões sem muros’ já vivemos ou ainda estamos a viver? Mas a principal lição talvez seja “ao tocar uma alma humana seja apenas uma alma humana”. Todos, indiscutivelmente, têm uma história. Não é preciso concordar, segui-la, mas, se for possível ouça, sem dedos em riste e respeite, sempre.
Depois daquele dia, o vi mais algumas vezes, mas depois de um tempo não mais. Sabe-se lá o que aconteceu com aquele homem jovem, de poucos sonhos, ‘abatido’ pelo álcool e por todo mal que o vício trouxe à sua vida.
Texto: Natália Tiezzi




